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domingo, 16 de agosto de 2009

APOSENTADORIA FELIZ


















Se você pensa que Matilde teve do bom e do melhor quando ainda era uma menininha, se enganou redondamente.Vinda de uma família simples aprendeu logo cedo a vender o seu próprio peixe, guardando suas economias numa maleta velha.Era pau para toda obra!
Com seu olho vivo (vivíssimo) enxergava longe a procura de novas oportunidades para conseguir um pouco de conforto.
Dizia com a boca cheia, que nunca passaria fome e nem vontade de nada, pois boa vontade de trabalhar e progredir na vida, ela tinha para dar e vender.Principalmente vender.
Foi assim que Matilde levou sua família nas costas durante anos.Por ser a filha mais velha e criada sem o pai, sentia-se responsável por cada um deles.Não tinha tempo para bater pernas pela rua ou ficar de tererê no portão, curtindo um namorado.Que namorado, que nada! Seu namorado era o ponto de ônibus.
Aquela mulher era um trator desgovernado e preste a explodir.Saia logo cedo para o escritório e sem olhar para trás, matutava um jeito de se dar bem na vida.Mas não é fácil sustentar um batalhão de gente chupim!
Tinha que ter o dinheiro para o cinema de Totoca, para a sandália de Luzia, para o cigarro do João, para o acampamento de Lidiane ...E pra ela o que restava, hein? As contas atrasadas.
Isto que é mana, que se definhava aos poucos em prol da comunidade carente. Não podia dar-se ao luxo de pensar em si mesmo.
- Matilde não pode ter um namorado porque precisa economizar para a faculdade de Miltinho e os livros lhe custavam os olhos da cara.- explicava Luzia.
- Matilde também não pode curtir a vida, porque precisa economizar para o futuro de Décinho.- dizia Totoca.
E quem é este tal de Décinho? Sei lá.Talvez o futuro filho de Lidiane.
Então ela fez todos os cálculos e seus prazeres poderiam ficar para depois do casamento de Judite.
Somente assim seria uma mulher livre, leve e solta!
Durante muito tempo foi uma guerreira, matando um leão por dia apenas para conseguir sobreviver com fé e coragem.
Eles não lhe negavam palavras de incentivo, esborrachados no sofá da sala, reclamando que o ventilador tinha pifado e que a carne tinha gosto de sapato velho.
- Você já foi melhor, hein mana?!
Pobre Matilde! Não se desperdiça uma vida inteira pagando um mico tão caro assim.Não se pode dar o que não se tem.E ela não tinha amor próprio! Não se enxergava no espelho e a galera queria mais.Queriam que explodisse de tanto trabalhar!
Todas as contas estavam pagas, o consórcio do carro estava em dia e a casa estava linda com moveis novos e tapetes importados, porém o seu coração continuava um cômodo vazio.
Até que percebeu que não poderia continuar sendo o burro de carga da família.Estava cansada e talvez, quem sabe, merecesse uma aposentadoria.Isto mesmo, precisava repousar os pés sobre as almofadas e se dar ao luxo de assistir a Sessão da Tarde com uma tigela de pipocas no colo.Isto mesmo.Decidiu que queria ser feliz!
Matilde não comentou seus planos com ninguém.Faria uma surpresa para todos, aparecendo em casa no meio do dia só para avisar que dali por diante estava aposentada para sempre.
Que desaforo! Quase comeram seu fígado.
- E quem pagaria a prestação da geladeira?- esperneavam.
- Quem? Quem compraria o terreninho em Santos?- choramingavam.
Ela não quis saber dos detalhes!
A partir daquele momento era uma mulher sem compromissos com horário, patrão ou livro de ponto.Tinha milhões de minutos para curtir a vida! Nos primeiros dias sentiu alívio, passeando de camisola pelos cantos. Era presença marcante e indesejada pelos corredores da mesma casa que dividia com os irmãos, enquanto eles resmungavam de raiva:
- Ah, Matilde implicante! Saco.
Passou a fiscalizar a obra do vizinho e o caminhão de gás.Fizeram de tudo para desovar aquele entulho num canto qualquer, mas Matilde controlava até a posição do sol.
- Rápido com este banho! Q uem quiser mistura, que frite um ovo!
Matilde não estava aposentada.Estava morta, por dentro e principalmente por fora.Não tinha o brilho da vida e isto custou muito caro para a sua família que já estava arrancando os cabelos.
Totoca não ia mais para o cinema, porque não tinha dinheiro para o ingresso.Luzia também não saia de casa e João parou de fumar.
Nisso Matilde percebeu que a marcação estava cerrada em cima dela e que o mundo continuava girando do portão para fora.
Agora era a vez daquela gang picareta colocar a mão na massa, porque os bailes da vida estavam a sua espera.Cortou todas as verbas extras e a casa quase faliu, se não fosse Miltinho trabalhar no açougue e Lidiane na imobiliária.
Matilde tinha este direito e a sua liberdade só dependia de uma renovação íntima.Ela criou coragem e voltou a ser uma mulher ativa, construindo a sua própria felicidade, com muita energia.
Energia para a ginástica, para as amigas do curso de inglês e para as festinhas que não faltavam em sua agenda! Matilde transformou-se numa mulher bonita, saudável e feliz.Acima de tudo capaz de curtir todas as oportunidades da vida, como uma menininha travessa, com os olhos a procura de novas emoções.E quem pagava a conta? Toda a família, fazendo uma vaquinha para que Matilde pudesse se divertir ao máximo, sempre alegre, satisfeita e bem longe de casa.


Silmara Torres Retti

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